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Sobre ouvir Cecílio


Fazer essa entrevista com o Cecílio Elias Neto foi, sem exagero, um dos momentos mais comoventes de todo o processo de construção do documentário Piracicaba Nunca Esqueceu. Já não era pouca coisa estar diante de uma figura tão marcante para a cidade, com um olhar tão generoso, lúcido e apaixonado pela cultura e pela memória piracicabana. Mas o que me tocou profundamente foi a ternura com que ele falava de cinema. Da sua vida com o cinema.

A cada resposta, era como se eu voltasse no tempo, mas não através de dados ou arquivos. Era o tempo sentido. O tempo vivo. Cecílio falava dos cinemas da cidade como quem fala de pessoas queridas, lugares sagrados da infância e da juventude. Do Cine Broadway ao São José, do Politeama ao Palácio, cada sala trazia não só filmes, mas também namoros, amigos, modas, tragédias históricas, sustos e esperanças. Lembro com carinho do momento em que ele contou, ainda menino, sobre a fila no Cine Broadway enquanto o mundo temia o fim após Hiroshima. Aquela imagem ficou comigo. O medo do fim do mundo e, ao mesmo tempo, as pessoas indo ao cinema. Porque a arte é um refúgio. 

Cecílio contou tudo com uma clareza impressionante, mas também com o humor leve de quem aprendeu a rir da vida. Entre tantas histórias, ele ria de seus amores de cinema, dos filmes que assistiu com a sogra e a futura esposa, das broncas dos lanterninhas e das matinês com paletó. Ria até do próprio ciúme juvenil de Ava Gardner, casando com Frank Sinatra. Mas ali, por trás da risada, estava sempre um carinho verdadeiro, pelos filmes, pelas salas, pelo que tudo isso significou em sua vida.

A entrevista foi longa, e poderia ter sido ainda mais. Quando ele disse que, para falar de cinema, seria melhor numa mesa de bar, com chopp e caipirinha, eu soube que ali havia não só um bom contador de histórias, mas um amigo da memória. E foi esse tipo de amizade que sempre me moveu a criar Piracicaba Nunca Esqueceu. A vontade de não deixar essas histórias escorrerem pelos vãos do tempo. De ouvir, com calma e cuidado, o que essas paredes silenciosas dos antigos cinemas ainda podem nos contar, através de vozes como a de Cecílio.

A fala dele, quando compara o passado a uma raiz de árvore, me tocou profundamente. “Se a raiz morrer, morre tudo ali”, ele disse. E eu senti, mais do que nunca, que este projeto é sobre preservar essas raízes. Não por saudosismo, mas por gratidão. Para que quem venha depois também saiba de onde vieram as flores, as folhas e os frutos dessa cidade. Ouvir Cecílio foi como assistir a um filme raro, daqueles que a gente tem que guardar com cuidado na memória e no coração. Uma mistura de crônica, poesia, jornalismo e afeto. Uma aula sobre o que significa viver com paixão, e manter essa paixão viva por décadas.

Saí da entrevista com uma certeza: enquanto houver pessoas como Cecílio, e enquanto estivermos dispostos a ouvir com o mesmo carinho com que ele contou, Piracicaba Nunca Esqueceu continuará sendo muito mais do que um documentário. Será, sempre, um ato de amor.

Dara Oliver 

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