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O Cinema Era um Evento


Entrevistar o Luiz, meu pai, foi mais do que uma entrevista. Foi um mergulho em lembranças compartilhadas, num tempo que, embora eu não tenha vivido, de alguma forma sempre me habitou. Desde pequena, cresci ouvindo sobre as salas de cinema de Piracicaba. Mas sentar com ele, com o gravador ligado e a câmera registrando, foi como abrir um álbum de família onde cada página tem cheiro de poltrona, som de trailer e luz de projetor.

Luiz Andia Filho cresceu dentro de salas de cinema, literalmente. irmão de exibidor, ele conta que suas primeiras lembranças de vida já têm como pano de fundo as salas da cidade. Contar bilhetes com o pai, correr entre as fileiras vazias durante a manutenção, observar a sala de projeção como quem observa um templo… Tudo isso construiu nele uma relação que não é só afetiva, é também existencial. Cinema, pra ele, era parte do cotidiano. E ao mesmo tempo, um ritual.

Na nossa conversa, ele me falou sobre o cinema de rua como evento. “Você se programava para ir ao cinema. O cinema era o programa”, ele disse. Não era como hoje, em que o cinema se tornou um item de uma ida ao shopping, junto com o almoço, a compra do presente, a passada na farmácia. Antigamente, sair para o cinema era um acontecimento social. Um coletivo. Amigos, primos, casais, filas imensas. Nada de poltrona marcada, era uma correria gostosa para sentar junto, encontrar lugar, sentir-se parte.

Ele descreveu com riqueza o funcionamento desse ecossistema: os cartazes dos próximos lançamentos, o aviso da censura, o trailer, o Canal 100. E claro, o lanterninha. Eu me emocionei com essa figura que hoje já quase não existe, mas que era o guardião da ordem e da experiência: conduzia quem chegava atrasado, repreendia discretamente os barulhentos, e comandava tudo com a dignidade silenciosa de uma lanterna.

Luiz também falou sobre a transição para os cinemas de shopping, e como aquilo representou não apenas uma mudança estrutural, mas simbólica. O cinema deixou de ser ponto de encontro democrático, onde todas as classes sociais se cruzavam no centro da cidade, e passou a ser filtrado por quem pode ou não chegar ao shopping. “O cinema de rua era mais democrático”, ele disse. E essa frase ecoa até hoje, em tantas outras falas que recolhi durante o documentário.

A parte mais tocante, para mim, foi quando falamos sobre o impacto emocional de voltar a Piracicaba para participar do meu projeto. Ver ele se emocionando com a ideia de estar ali, entrevistado por mim, voltando à cidade depois de tanto tempo, foi de uma beleza silenciosa. Ele me disse que nunca teria imaginado aquilo, que seria entrevistado pela filha para um documentário sobre a história da família, da cidade, do cinema.

A nossa conversa foi repleta de memórias, das filas quilométricas no Rivoli, do dia em que assistiu Blade Runner seis vezes, das tentativas desastradas de levar pipoca de casa para o cinema. Mas, acima de tudo, foi um reencontro. Com ele mesmo. Com a infância. Com o irmão. Com a cidade. E comigo.

Ao final, percebi que o que Piracicaba Nunca Esqueceu guarda não são apenas dados ou registros históricos. São reconexões como essa. São encontros entre gerações, entre ruas, entre o que foi e o que ainda resiste. Porque como o meu pai disse: o cinema muda, mas não acaba. E a memória, quando é bem cuidada, também não.

 Dara Oliver 

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