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O Cinema Segundo Chico


Entre tantas entrevistas feitas para Piracicaba Nunca Esqueceu, conversar com Chico Andia foi, sem dúvida, uma das mais marcantes. Não apenas pelo que ele representou para o cinema em Piracicaba, como exibidor, construtor, gestor e apaixonado, mas pela forma como ele viveu o cinema: com precisão, exigência, e uma entrega que beira a devoção. Sentar com o Chico foi como entrar numa sala de projeção com as luzes acesas. Nada ali era deixado ao acaso. Cada detalhe técnico da estrutura das salas, do som, da luz, da arquitetura, das mudanças nos hábitos dos espectadores… tudo ele lembrava. E não só lembrava, ele sentia. Falava com a convicção de quem passou noites dormindo no chão da cabine para acertar a qualidade de som de um cinema, como ele mesmo fez no Cine Colonial, sua primeira sala.

Foi emocionante ouvi-lo contar como começou sua relação com o cinema ainda menino, assistindo seriados no Cine São José, montando projetores de madeira com as próprias mãos, alugando filmes em 16mm para exibir em casa. Era uma relação que ia muito além do entretenimento, era vocação. Talvez por isso o cinema que ele construiu, o Cine Plaza, tenha sido descrito por ele como "classe A", e com tanto orgulho. Foi seu sonho realizado em concreto. E também sua maior perda. O prédio do Plaza desabou, levando com ele vidas e memórias. Chico sobreviveu, escapando por um corredor lateral. Ver seus olhos falarem dessa tragédia com tanto peso e ainda assim com tanta lucidez foi um daqueles momentos que não cabem em câmera. Ali, entre a dor e a superação, eu entendi que o cinema não é apenas o que se projeta na tela, mas também o que se vive fora dela.

Com Chico, também entendi que as salas de cinema são muito mais do que espaços físicos. Ele falava sobre arquitetura, sobre as fachadas elegantes dos cinemas de rua, sobre o glamour do Cine Broadway, o respeito pelo som perfeito, e a tristeza ao ver salas virarem lojas ou igrejas. “Cinema era status”, ele disse. E eu ouvi aquilo como um lamento, mas também como um lembrete: um dia, o cinema foi o centro da vida cultural de uma cidade. Mesmo após décadas de trabalho intenso com exibição, Chico não frequenta mais salas. Ele prefere o silêncio e o controle do som de sua própria casa. Disse que já não encontra nos cinemas atuais aquela experiência envolvente de antes. Como alguém que viveu profundamente o cinema, ele se tornou, ao mesmo tempo, seu maior crítico e seu maior defensor. E é lindo ver que esse amor ainda pulsa, mesmo que de outra forma.

Na nossa conversa, ele relembrou também o Cine Arte, iniciativa que nasceu de um grupo de entusiastas e que teve sua sala batizada em homenagem ao Grande Otelo. Contou com orgulho que Otelo, mesmo doente, saiu do hospital para estar presente na inauguração. Há algo de poético nisso: um cinema feito por paixão, inaugurado por um símbolo da arte brasileira, e destruído anos depois por uma enchente. Tanta beleza e tanta efemeridade num mesmo gesto. Durante a entrevista, em meio a tantos dados e memórias, o que mais me tocou foi o carinho quase físico que ele tinha pelas salas. Falar sobre elas era como falar de filhos. Ele sabia onde estavam os fios, os projetores, as falhas e os encantos. Sabia o cheiro, a temperatura, a acústica. Era técnico, sim. Mas também era pura emoção.

Terminar aquela conversa me deixou com um nó na garganta e um caderno cheio. Mas mais do que as anotações, eu levei comigo a sensação de ter falado com alguém que não apenas viveu a história, ele a construiu. Chico é parte do que Piracicaba Nunca Esqueceu quer preservar. Um pilar. Uma sala em forma de gente.

E eu só posso agradecer.

Dara Oliver 


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